a tela finalmente escura

Ney Ferraz Paiva
Revista Caliban issn_0000311
5 min readAug 11, 2023

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Por calí boreaz

a solidão de um carrinho de pipoca e a solidão do homem do carrinho de pipoca e a solidão de quem passa e observa a solidão que fica. a solidão da cidade que se observa do exílio, e hesita. a solidão do silêncio que exila a palavra e mede as distâncias. a solidão da palavra que, de sua vez, aguarda o movimento da boca e mede o cansaço. a solidão dos becos e das avenidas que é a mesma ao acender das janelas. a solidão do poste de luz entre outros postes de luz. a solidão da luz que se acende no olho de alguém para iluminar outralguém. e a solidão de cada cor dentro do semáforo. a solidão de cada amor dentro. a solidão de um automóvel, entre outros automóveis, parado num semáforo. a solidão da roda — a do automóvel, a do carrinho de pipoca — que é potência de movimento mas, também, de inércia: quanto mais ela gira, menos sabe que gira.

a solidão de um planeta girando sobre si mesmo.

a solidão parece ser uma só. estar nela é o que, enfim, nos une:
eu sou o exílio do outro mais o meu exílio no outro. eu só

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ele puxava & caminhava como quem não tem destino e, de maneira ritmada, dava olhares para a praia, como se essa virada contemplativa fosse um refrão, ou uma vírgula, no curso do seu caminhar. ele puxava seu carrinho como quem carrega o próprio corpo, ou a vida, sem mais distinguir um e outro. a cidade não o notou, mas eu sim. fiquei seguindo-o por um bom tempo, ouvindo a música do seu caminhar, lendo o romance do seu caminhar. ele foi o meu personagem e eu, atrás dele, inexisti para sempre

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a soma do passado mais o futuro é o presente. ou o presente é o que justamente consegue escapar ao passado e ao futuro?

no labor dos compassos, no amianto do riso, no corrimão escasso do impreciso, no que apesar do sismo brota pelas brechas, nas flechas que atravessam os espantos, tantos,

se eu fosse john cage, elevaria a não-batida do teu coração ao status de música

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pegadas para restauração. outros náufragos aparentemente humanos revelam-se ao fundo da exaustão. copacabana — cinzeiro de um deus difícil. fuma-nos com seu último sopro em todas as tragadas

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vou pelos vãos das veias com um nome fechado nos pulsos e um silêncio espalhado nos muros. os muros, cheios de letreiros. os pulsos, cheios de sinais de trânsito. o passo que se pede no vazio estrondoso, pois não, eu o dou. mas então, outro. sucessivamente me avisto no espelho do vazio seguinte sem saber se já estou nele ou pra lá caminho ou se o caminhar está do avesso. fractalidade fatal com que me fito, ou finto. no espelho mais distante, porém, uma de mim destoa, despassa. voo pelas vãs vielas com um céu de bolso e um estrondo de amor. então, em vez do silêncio envolto de palavras — a palavra revolta de silêncio. em vez do teu nome fechado nos pulsos — a pulsação do inominável

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a lua estava cheia e as placas tectônicas do bairro fundiam os tempos incidindo em cheio no alvor de um outono. muitos disparos se ouviam contra as ondas, ou a favor das ondas — a cidade ignora, a cidade ígnea, e os disparos dos poros, e os despreparos dos puros, e as esporas da civilização apontadas para os peitos parados no espanto.

quanto tempo pode caber por segundo — quantos segundos demora o tempo para ser agora

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quantos agoras demora o tempo para produzir um segundo? presencio a toada do nunca mais a cada instante mas há uma paralela sequência de instantes correndo noutra velocidade, e nesta escuto a recriação do universo tão longamente lenta que ainda não pode ser flagrada no tempo

e meu corpo, enquanto corte, continua passando, como um ponteiro, pelo mesmo lugar, a fulminar a mesmitude

Os recortes e as fotos compõem o livro inédito a tela finalmente escura, da poeta calí boreaz, em vias de publicação pela Kafka Edições.

sobre a autora

calí boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou língua e literatura romenas e tradução literária. No virar de 2009 para 2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de Janeiro, onde mergulha no universo editorial e se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal, 2010], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil, 2012], de Mihai Zamfir. Tem dois livros de poesia: outono azul a sul [ed. Urutau, Portugal & Brasil, 2019], um relato poético do exílio e da clandestinidade, com posfácio de João Almino e desenhos de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira; e tesserato [ed. Caos & Letras, Brasil, 2020], uma reunião de tentativas poéticas acerca da suspensão e do deslocamento na imobilidade. Seus contos islandeses e a fazedora de luas integram as antologias Coleção Identidade vol. II [Amazon Kindle, 2019] e Conto em Casa [ed. Raiz, 2020], respectivamente. Seus poemas e contos têm aparecido também em várias revistas literárias brasileiras, portuguesas, galegas e mexicanas, bem como em exposições de Portugal e da Índia. Criou e apresentou em 2020, para o Midrash Centro Cultural, o programa semanal ao vivo de poesia contemporânea ainda somos muito novos para escrever estes poemas. Interpreta seus poemas em jam poetry sessions e em forma de filmepoemas. Em 2022, lança o podcast epistolar às vezes a resposta não deveria ser imediata e estreia seu espetáculo tesserato, jam session que funde poesia, dança e música, baseada no seu segundo livro. Em 2023, tem novo livro a caminho.

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