Escuro noturno sombrio

Ney Ferraz Paiva
Revista Caliban issn_0000311
3 min readAug 2, 2023

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Por Fernando Maroja

© Kai Yokoyama

Inimigos

Na hora da insônia

Vesti o casaco preto

E fui perambular na grande avenida.

Veículos velozes desapareciam no horizonte

Mergulhavam fundo na distância

No escuro oceano chamado asfalto.

Ninguém sabia além de mim

Que esses carros engolidos pelo Hades

Eram submarinos inimigos.

Ponte Vecchio

Vagando pela Ponte Vecchio

Procuro a senda que me levará

A voltar no tempo

A regressar anos e anos, décadas e décadas

Séculos e mais séculos

Apenas para ver

Com o olhar que me foi presenteado por Deus

O evento

O momento em que Dante e Beatrice Portinari

Andavam em sentidos opostos

E finalmente se cruzaram.

Vagando pela Ponte Vecchio

Vou apenas andar entre homens

Ultrapassar e ser ultrapassado

Até nutrir a sensação

De que me tornei a flecha disparada por Deus

A regressar

Anos, décadas e séculos

Em direção à obra-prima

Ao instante em que Dante e Beatrice Portinari

Se cruzaram no meio da ponte

E legaram um ao outro os seus extremos

O amor.

Judas

Horas antes de seu fim

Sentindo o declínio da voz

E o nascimento do silêncio

Aquele ser eternamente calado

Nomeado Morte

Virgílio dividiu com o Imperador de Roma

Seu amigo e protetor

O anseio de eliminar do mundo

O manuscrito de Eneida.

Quase dois mil anos depois

Franz Kafka nutriu semelhante desejo

Na hora do juízo final

E pediu ao amigo Max Brod

Que seus manuscritos fossem incendiados

E se tornassem as cinzas

A subir e descer os degraus

Da invisível escada em espiral.

Otávio Augusto

Ignorando o último anseio de Virgílio

Salvou o poema Eneida.

E Max Brod jamais acendeu a fogueira

Que Franz Kafka sonhou.

Dois escritores, apenas um destino

E um solitário anseio

Apesar do tempo e seus milênios.

Dois escritores e a lição de que todo artista

Deve ter o seu braço direito

Seu amigo e traidor.

O livro de braços abertos

Um dia

Alguém perdido no mundo

Alguém que jamais encontrou

Uma cadeira vazia no deserto

Poderá sentar-se numa livraria abandonada

E salvar o meu livro de seu solitário destino.

E o meu livro?

Poderá o meu livro salvar o homem

Que está à beira do abismo

Oferecendo-lhe a palavra que era tão procurada?

Se os braços do meu livro forem abertos

Pelo homem mais perdido

Poderá o meu livro, aberto na forma de cruz

Tornar-se a salvação?

A voz de Penélope

Lembro de tua voz a chegar

E do meu olhar

Que seguia o percurso inverso

Do fim para o início, do homem para a mulher.

Estamos sempre em busca da fonte

Sempre a voltar

Do fim para a nascente do rio

No eterno regresso de Tróia para Ítaca.

Mas um dia

Tua voz chegará de algum lugar

Que eu não sei

E não saberei para onde voltar.

Poemas retirados do livro Escuro noturno sombrio, Editora Penalux, 2023.

SOBRE O AUTOR

Fernando Maroja nasceu em Belém do Pará e escreveu os livros Cinzas (Editora Paka-Tatu), O escravo do vazio (Editora Penalux) e Vênus de Milo em Ferentari (Editora Penalux).

Publicou em diversas revistas literárias (Cult, Zunai, Subversa, Mallarmargens, Caliban, Gueto etc.) e está entre os poetas da antologia O vento continua, todavia — Dez vozes da poesia contemporânea em Belém (Editora Kotter).

Cartaz do lançamento do livro em Belém

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