Escuro noturno sombrio
Por Fernando Maroja
Inimigos
Na hora da insônia
Vesti o casaco preto
E fui perambular na grande avenida.
Veículos velozes desapareciam no horizonte
Mergulhavam fundo na distância
No escuro oceano chamado asfalto.
Ninguém sabia além de mim
Que esses carros engolidos pelo Hades
Eram submarinos inimigos.
Ponte Vecchio
Vagando pela Ponte Vecchio
Procuro a senda que me levará
A voltar no tempo
A regressar anos e anos, décadas e décadas
Séculos e mais séculos
Apenas para ver
Com o olhar que me foi presenteado por Deus
O evento
O momento em que Dante e Beatrice Portinari
Andavam em sentidos opostos
E finalmente se cruzaram.
Vagando pela Ponte Vecchio
Vou apenas andar entre homens
Ultrapassar e ser ultrapassado
Até nutrir a sensação
De que me tornei a flecha disparada por Deus
A regressar
Anos, décadas e séculos
Em direção à obra-prima
Ao instante em que Dante e Beatrice Portinari
Se cruzaram no meio da ponte
E legaram um ao outro os seus extremos
O amor.
Judas
Horas antes de seu fim
Sentindo o declínio da voz
E o nascimento do silêncio
Aquele ser eternamente calado
Nomeado Morte
Virgílio dividiu com o Imperador de Roma
Seu amigo e protetor
O anseio de eliminar do mundo
O manuscrito de Eneida.
Quase dois mil anos depois
Franz Kafka nutriu semelhante desejo
Na hora do juízo final
E pediu ao amigo Max Brod
Que seus manuscritos fossem incendiados
E se tornassem as cinzas
A subir e descer os degraus
Da invisível escada em espiral.
Otávio Augusto
Ignorando o último anseio de Virgílio
Salvou o poema Eneida.
E Max Brod jamais acendeu a fogueira
Que Franz Kafka sonhou.
Dois escritores, apenas um destino
E um solitário anseio
Apesar do tempo e seus milênios.
Dois escritores e a lição de que todo artista
Deve ter o seu braço direito
Seu amigo e traidor.
O livro de braços abertos
Um dia
Alguém perdido no mundo
Alguém que jamais encontrou
Uma cadeira vazia no deserto
Poderá sentar-se numa livraria abandonada
E salvar o meu livro de seu solitário destino.
E o meu livro?
Poderá o meu livro salvar o homem
Que está à beira do abismo
Oferecendo-lhe a palavra que era tão procurada?
Se os braços do meu livro forem abertos
Pelo homem mais perdido
Poderá o meu livro, aberto na forma de cruz
Tornar-se a salvação?
A voz de Penélope
Lembro de tua voz a chegar
E do meu olhar
Que seguia o percurso inverso
Do fim para o início, do homem para a mulher.
Estamos sempre em busca da fonte
Sempre a voltar
Do fim para a nascente do rio
No eterno regresso de Tróia para Ítaca.
Mas um dia
Tua voz chegará de algum lugar
Que eu não sei
E não saberei para onde voltar.
SOBRE O AUTOR
Fernando Maroja nasceu em Belém do Pará e escreveu os livros Cinzas (Editora Paka-Tatu), O escravo do vazio (Editora Penalux) e Vênus de Milo em Ferentari (Editora Penalux).
Publicou em diversas revistas literárias (Cult, Zunai, Subversa, Mallarmargens, Caliban, Gueto etc.) e está entre os poetas da antologia O vento continua, todavia — Dez vozes da poesia contemporânea em Belém (Editora Kotter).