Pontas soltas tardes de neblina

Ney Ferraz Paiva
Revista Caliban issn_0000311
5 min readOct 4, 2023

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Por Rogério A. Tancredo

Belém do Pará, desenho de Sebastião Godinho.

À esquerda, numa casa de madeira, vivia Mundico, um homem devastado pela lepra. A doença já havia comido parte de seus membros; no lugar dos pés e das mãos, havia cotos que ele cobria com meias. Arrastava-se com a ajuda dos braços que apoiava no chão. Às vezes, erguia-se com sofreguidão e caminhava de forma precária e rudimentar. Tinha uma irmã que o ajudava, ela trazia-lhe comida, lavava suas e roupas, mas, fora isso, era completamente independente, fazia coisas inimagináveis para uma pessoa convalescente, como capinar ou limpar a vala com a enxada. Eu ficava impressionado com como acendia o cigarro. Colocava o canudo na boca e a caixa de fósforos entre as coxas, depois riscava o palito que segurava entre os cotos. Era um malandro da velha guarda. Antes da doença, vivia com as putas, enfiado na mesa de jogo, perdido entre um às de copas e um rei de paus. Escondia o dinheiro que ganhava em latas, que depois eram enterradas, uma prática da malandragem na época. Quando descobriu que estava doente, não aceitou o diagnóstico, sumiu no mundo, só voltou quando seus dedos começaram a cair. Um tanto tarde, mas a tempo de fazer o tratamento e não ser devastado completamente pela praga. Tinha o nariz e as orelhas carcomidos, corroídos até a metade. Igualmente ao barqueiro de Papillon, sua chaga não era contagiosa. Parecia dormente, porém, como um animal silencioso e invisível, continuava a comê-lo devagar, e era possível ver as carnes desprendendo-se do corpo. Durante esse processo ficava taciturno e sombrio, totalmente diferente do malandro bufão que tirava sarro com a cara de todo mundo. Eu me sentava embaixo da castanheira que ficava em frente de sua residência, para escutá-lo falar putarias ou vê-lo fazer um truque de matemática. Era muito bom em matemática, fazia contas complexas de cabeça. Às vezes pedia para eu comprar alguma coisa na feira, depois me dava o troco. Tinha uma amante que o visitava uma vez por semana, absurdamente maquiada e corpulenta, exalava um cheiro adocicado de embrulhar o estômago. Os dois ficavam conversando na sala, ela acariciava sua cabeça enquanto ele a envolvia com os braços feridentos, logo as janelas se fechavam. Uma vez os vi por cima do muro. Sem calcinha e com a saia levantada, ela gemia ao toque dos beijos que recebia nas coxas. Ficava me perguntando como uma mulher era capaz de deitar-se com aquele homem, que, além da doença devastadora, vivia numa casa onde os ratos habitavam o assoalho. Era aposentado, mas tinha a capacidade de 37 duplicar a parca aposentadoria. Comprava barato e vendia mais caro, emprestava dinheiro a juros, sempre fuçando uma possibilidade de lucrar. Como era um jogador nato e não conseguia ficar distante das cartas, montou uma mesa de jogo na sala. Ao redor desta, reuniam-se professores, feirantes, bandidos, funcionários públicos, donas de casa, mas ele pouco jogava, atuava como uma espécie de gerente do cassino. Cobrava uma porcentagem de cada jogador para cobrir os custos, e o ganhador ainda tinha que lhe dar cinco por cento do lucro. Foi assim que conheci o “Time da liga”, um trio de trapaceiros que vivia quebrando as mesas de jogo por onde passava. O nome era devido às ligas que seus membros traziam presas ao corpo, onde escondiam as cartas. O n° 1, magro, de andar ligeiro e olhos de raposa, era o que mais me impressionava devido a sua esperteza. De calça jeans e camisa xadrez, parecia um personagem de faroeste. Eu era amigo de sua filha. Uma vez fomos até sua casa para pegar uma bola de futebol. A casa estava em completa escuridão, e, ao acender a luz, vimos o n° 1 em pé no meio da sala com o às de copas entre os dedos. Estava treinando um movimento, se conseguisse ser bem-sucedido em um ambiente escuro, imaginava que aos olhos de todos, sob a claridade do dia, não encontraria dificuldade para executar o truque. O movimento sairia naturalmente, de forma espontânea. O n° 2 era um careca barrigudo, bebedor de cerveja. Não olhava ninguém nos olhos, tinha a fala mansa, mas por trás da pele de cordeiro gordo havia um lobo traiçoeiro. Já tinha esfaqueado vários adversários em mesas de jogo pela cidade. O n° 3 ninguém conhecia, era uma incógnita, podia ser qualquer um dos jogadores, um truque para confundir os adversários. Atuavam juntos ou individualmente. Sacavam a carta de que precisavam da liga presa ao corpo ou faziam um sinal para o parceiro descartar o naipe vencedor. Quando recebiam uma mão ruim, acrescentavam uma carta ao baralho e diziam que o crupiê havia errado a contagem. Para não dar na vista, passavam várias rodadas sem ganhar, depois começavam a bater sem parar. Eram imbatíveis. Viajavam por todo o país, jogando em cruzeiros de turismo, cassinos subterrâneos e casas de apostas clandestinas. Vi homens perderem casa, carro, tudo o que possuíam naquela mesa, e serem completamente arruinados pelo “Time da liga”. Alguns, mesmo sabendo da fama do trio, continuavam jogando, porque a compulsão não os deixava reconhecer que estavam sendo roubados. Às vezes, havia confusão, o trio dava um tempo, mas logo depois voltava à ativa. A polícia, como sempre, nada fazia, provavelmente pegava seu quinhão do bolo. Soube, recentemente, que Mundico morreu. Foi enterrado num esquife de criança, parecia um pedaço de madeira arruinado, disseram. A casa foi derrubada, e suas histórias esvaíram-se junto com os escombros. No entanto, agora brotam destas páginas que não cansam de me inquirir.

Excerto do livro Pontas soltas tarde de neblina de Rogério A. Tancredo, publicado pela Editora Urutau (2023).

SOBRE O LIVRO

Memórias, ensaios, narrativas, crônicas, textos abandonados, restos de leitura; é desse liame de textos — que rompe com a tênue fronteira dos gêneros literários — que surge Pontas soltas tardes de neblina, um romance autoficcional, no qual o narrador relembra sua infância em um bairro de classe média: o primeiro contato com a leitura, o cinema e a escrita, a partir das histórias que sua avó contava num final de tarde.

SOBRE O AUTOR

Rogério A. Tancredo nasceu em Belém — PA, em 1978, cidade onde reside, depois de ter vivido em cidades como Ribeirão Preto, Uberlândia e Fortaleza. É mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e instrutor de oficina de escrita criativa. Tem ensaios e contos publicados em revistas brasileiras e portuguesas. É autor dos livros Relato de um paciente desconhecido (Kazuá, 2019) e O dia que conheci Lucia Berlin (Caravana, 2021).

Link para compra do livro:

https://editoraurutau.com/titulo/pontas-soltas-tardes-de-neblina

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